Luis Fernando Veríssimo - Elizabethanos
SHAKESPEARE - Quem sois, que me acordais de um sono tao longo que nas palpebras pesa a remela?
ELIZABETH - Sou a rainha.
SHAKESPEARE - Elizabeth?
ELIZABETH - Ela.
SHAKESPEARE - Entao eu nao morri, e quatrocentos anos de tumulo foram o sono de um segundo, e o declinio da Inglaterra o devaneio cruel de um cerebro vagabundo?
ELIZABETH - Nao, vos suplico, nao erreis na deducao. Sou Elizabeth, sou rainha, mas nao sou aquela nao. A Inglaterra esta mudada, o mundo uma anarquia. Mas, quatrocentos anos depois, ainda vive a monarquia.
SHAKESPEARE - Agora vejo com clareza, sois muito diferente. Uma rainha assim, sei la, com cara de tia da gente.
ELIZABETH - Mas o reino eh o mesmo, a mesma ilha coroada. A mesma raca de reis, e a coroa o mesmo fardo. Soh nos falta...
SHAKESPEARE - O que?
ELIZABETH - Um bardo.
SHAKESPEARE - Entendo! Nao quereis meus ossos nem minha carne, nao eh a ressurreicao que minha acena. Quereis meu espirito... e minha pena.
ELIZABETH - Sim, cantai, bardo, como fizestes um dia, as glorias e os feitos, o esplendor e o tutano deste novo tempo - elizabethano.
SHAKESPEARE - A tarefa, confesso, me atrai, embora esteja enferrujado. Ah, rechear outra vez mil folhas com versos de lado a lado! Plenos de sangue e luxuria, de vida, de som e de furia. Contai-me, rainha, tudo, sem esquecer um pajem: quem fez o que com quem, com que calhordice ou coragem.
ELIZABETH - Bem. Meu tio Eduardo, um romantico...
SHAKESPEARE - Ja preparo o cantico... “Matou dezessete sobrinhos e morreu com a mente insana.”
ELIZABETH - Não. Casou com uma americana.
SHAKESPEARE - Esqueci esse. Quem mais? Que herois? Que viloes? Quem espantou o mundo com sua vida e espantarah o inferno com sua morte?
ELIZABETH - Tem Felipe, meu consorte.
SHAKESPEARE - Ah, pressinto um personagem... Conspira, transpira, se esgueira? Queima com a chama terrivel do eterno enjeitado?
ELIZABETH - Nao, eh ateh meio apagado.
SHAKESPEARE - E os principes? Estes inspiram a nacao. Qual deles eh o guerreiro? Qual o alegre fanfarrao? Algum filosofo? Algum esteta? Pelo menos um mau poeta? Qual o carneiro, qual o lobo?
ELIZABETH - Nem uma coisa nem outra...
SHAKESPEARE - Nessa corte soh tem bobo!
ELIZABETH - Esperai. Ha um que o povo inspira, e nao ha quem nao agite, dos condados a rua Fleet. Andrew eh o seu nome, e tem historias de sobra.
SHAKESPEARE - E o destino tragico dos principes estah em toda a minha obra. Ser aquele que o reino ama, e pelo reino quebra a cara. Esse Andrew...
ELIZABETH - Namorou uma pornostar e vai casar com uma Sarah.
SHAKESPEARE - Sim. Humm. Tudo bem. Nao repareis, soberana, mas vou voltar a dormir, seja na tumba seja na cama. Dormir, talvez sonhar, tanto faz - desde que eu volte a paz. Tente Coward, Wilde, Shaw, os tres juntos ou um soh. Pois os tempos sao elizabethanos mas nao sao nada shakespearianos.

Um comentário:
Veryssimo good.
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