quinta-feira, 8 de julho de 2010

Margaridas vermelhas


- Te apressa que já é hora do trem!
- Sim, Carlota, sim! Estou pronto, apressa-te tu!
"Ah, esse atrevimento juvenil". Carlota prende o último grampo no cabelo, pega de relance a maleta rosada e precipita-se à porta de entrada. Yjan se atrapalha pegando as malas, dando tempo a que Carlota chegue à porta e retorne, repreendendo-o:
- Anda, menino! Aligeira-te! - a velha portuguesa aproxima-se para apanhar uma das malas - Agora vamos, sim?
Saíram os dois correndo à estação, que não distava dali. Ainda assim, tiveram apenas o tempo de ver passar o trem, sentando já no banco de ripas para esperar o próximo.
No último vagão ia Anuchka, com a expressão habitual de indiferença, que sentia por todos aqueles que a não serviam. Pôs-se ela a rir ironicamente ao ver perderem o trem os dois atarantados.
Que grande indignação perpassou àquele trem, diante de Yjan. Já a tia, Carlota, nada vira, porquanto maldizia o mundo pelo atraso que não fazia menção sequer a eles dois.
Passou-se um penoso quarto de hora até avistarem outro trem na encruzilhada dos trilhos. Imediatamente o menino - que já nem podia ser chamado menino, mas permanecia no costume dos chegados - levantou-se do banco e acenou com o braço, garantindo-lhes um canto à cabine.
Ao frear o trem, o cobrador já atirara as malas no compartimento a elas destinado e recolhera os bilhetes aos passageiros.
A viagem de Bergen a Oslo não era breve, ainda mais na companhia da tia beata, a falar de religiões e costumes lusitanos, sobre os quais, tanto o primeiro, quanto mais o segundo, nenhum interesse tinha Yjan. Sendo assim, deixou Carlota a falar com as flores do estofado e meteu-se em seus devaneios.
Passado pouco da metade da viagem, já Yjan tinha revisto mentalmente todos os pormenores de sua vida, de seu tutor de latim e do padrinho, que não tinha uma vida muito "à moda". Dois parcos minutos foram o suficiente para voltar-lhe à mente a revolta causada por aquele sorriso irônico, mordaz. Não mais tempo foi necessário para transformar-se aquela revolta em uma curiosidade satírica.
"Há, por detrás daquele escárnio, algo mais. Há ousadia.". E assim despendeu o resto do tempo, pensando naquela ousadia. Parecia-lhe esta tão vil, mas, ainda assim, algo atraente. No exato momento dessa conclusão ouviu ranger os trilhos, indicando Oslo, que já ali estava.
Despedir-se da tia, após os oito meses de doença de sua mãe, agradava-lhe, não só por não simpatizar com a típica lusitana, mas também por saber assim a mãe reestabelecida completamente. Levou-a ao hotel, onde esta ficaria por mais dois dias, com toda a disposição que reuniu, sem dificuldade.
-Yjan! Te arranja, menino! Estás tu com os cabelos desgrenhados e a camisa amassada.
Yjan cedeu, mas se atrapalhando novamente com as malas, por ter de passar os dedos pelos cabelos, recebendo assim outro reproche.
Após dez quadras de malas pesadas e dizeres religiosos, chegavam ao hotel. Carlota assinou a reserva e pediu ao carregador que levasse as malas para o quarto. Yjan, não perdendo tempo, já ali despedira-se da tia e fora procurar um doce de amêndoas, que costumava comer sempre que ia a Oslo.
Com o doce na mão, correu até a estação, desejoso de voltar para casa. Logo que chegou, viu passar o trem. Sentou-se no banco mais próximo aos trilhos, olhando para os plátanos cruzados pelo trem que passara. Ao perder o trem de vista, olhou pro banco e viu uma menina impaciente, de olhar indiferente. Um sorriso de escárnio tomou conta do rosto de Yjan.
O silêncio entre eles só foi quebrado pelo apito do trem, dez minutos depois, que parecia rasgar os trilhos, voltando para Bergen.
A garota passou por Yjan, pulando logo no vagão, deixando este a cuidar das suas malas, entregando-as ao guardador. Yjan foi procurar uma cabine vaga, mas o que mais perto disso encontrou tinha ao canto aquele olhar indiferente. Pediu licença e sentou-se.
O garoto, ao cansar-se daquele silêncio constrangedor, perguntou-a do tempo, comentou sobre a viagem e os novos trens, indagou-a sobre sua impressão a respeito de Oslo. Desistindo de obter uma resposta, perguntou-lhe o nome e calou-se. A menina olhava-o, muda, passando assim quase cinco intermináveis minutos.
- Anuchka.
- Como?
- Meu nome. Anuchka.
- Prazer, Yjan.
- Essa primavera parece bastante amena, em tempertura e pluvialidade. As viagens ficaram mais agradáveis nesses trens, apesar de continuarem longas demais. Oslo ainda é a mesma, fria e adorável.
Yjan foi tomado de uma perplexidade visível em seu rosto, que fez rir Anuchka. Pela primeira vez ela não parecia indiferente, mas seu sorriso ainda tinha um fundo de ironia, que agora parecia a ele bastante encantadora.
- O que fizeste de tão breve em Oslo? - perguntou ela.
"Ela lembrou-se de mim na estação". - Fui levar minha tia ao hotel, para passar uns dias na capital. - Deu a resposta, arrependendo-se imediatamente da brevidade. - E você?
- Fiz só o que faço sempre. Viajo de trem, pra qualquer lugar, evitando assim ficar em casa.
"Além da ousadia, algo mais tem parte nessa indiferença". Enquanto esse pensamento o dominava internamente, junto a uma curiosidade irresistível, a única coisa que disse foi: - Moras em Bergen?
- Sim, mas não estaria errado dizer que moro nesse trem.
Quebrado o silêncio inicial, a viagem pareceu-lhes mais curta, entre curiosidades e afinidades. Porém, aquele sorriso de ironia não abandonou o rosto de Anuchka, nem por um instante.
Ouviram novamente o rasgar dos trilhos, provocado pelo freio do trem. Anuchka pulou para a estação, antes mesmo de o trem parar completamente, e dirigiu-se à bilheteria. Yjan foi atrás dela.
- Vais onde agora?
- Oslo.
Sem entender e novamente perplexo, Yjan preferiu não perguntar-lhe. Despediu-se e foi pra casa, lentamente, pra ter tempo de recordar toda a viagem. E, claro, ver Anuchka embarcar no próximo trem.
Já em casa, Yjan continuava inquieto, pensando naquela garota tão peculiar. Decidiu-se por esperá-la na estação, encontrando-a no trem de volta de Oslo. Depois da resolução tomada, ainda precisava de um motivo fictício para lhe expôr.
Almoçou com a mãe e voltou à estação, dizendo a esta que iria dar uma volta. Chegando lá, sentou-se no mesmo banco da manhã, a esperar, resolvido a dizer-lhe que estava esperando a tia, que decidira voltar.
Cinco minutos passaram pra ele se convencer de que a desculpa era inacreditável e decidir-se por deixar-lhe claro ser ela o motivo. Apanhou uma margarida na lateral do trilho.
Mal sentou-se, com a margarida na mão, e ouviu o apito do trem. Tentou parecer-se inabalável, até que Anuchka se aproximasse. De fato, ela o fez, sorrindo com a ironia que agora o agradava.
- E essa margarida?
- É sua. Como foi a viagem?
- Pena não ser vermelha. A viagem foi igual às outras.
- Não há margaridas vermelhas. E Oslo, como estava?
- Um dia encontro quem mas dê. Igual, fria e adorável.
Yjan entregou a margarida e foi-se embora, sem sequer um agradecimento. Pelo caminho resolveu-se não mais ver Anuchka. Ao chegar em casa já não estava assim tão resoluto.
No dia seguinte, Yjan voltou à estação, com um frasco de tinta vermelha. Ouviu o apito do trem e correu, ainda precisava da margarida. Anuchka viu-o e sorriu trocista.
Yjan abaixou-se rápido para apanhar a flor. Desequilibrou-se. Caiu nos trilhos.
Anuchka teve suas primeiras margaridas vermelhas.

Um comentário:

Duda Kroeff disse...

Por que não azuis? :(