domingo, 9 de outubro de 2011

Nunca, nunca, nunca, em toda a minha vida, eu soube.
Não que eu não soubesse a resposta de alguma pergunta ou a solução de algum problema importante. Eu simplesmente não sei o que vivi. Tudo é neblina. Como se a incerteza do futuro pairasse também sobre o passado.
Me perguntas se não há nada de que me lembre? Há. Lembro-me da minha agenda e do meu diário. Um para o futuro, o outro para o passado.
Devem querer saber como eu apaguei, e apago, completamente minha vida. Não os culpo, estou curioso também.
Foi dia 16 de abril de 1987, me responde o diário. Devo admitir que ele me responde com uma caligrafia que não é a minha, utilizando a sucinta frase: "Hoje nasceu Ian. Estamos muito felizes!". Acreditem, também fiquei decepcionado. O suficiente para continuar pelas páginas; eu preciso de mais respostas.
O próximo fragmento de minha existência data de 24 de outubro de 1994. São sete anos! Sete! Não é como se eu não soubesse de um dia na minha vida; são sete anos de completo desconhecimento! Qual foi minha primeira palavra? Quando comecei a andar? Ou quando caí o primeiro tombo de bicicleta? Nada!
Tudo bem, vou me acalmar...
Agora a caligrafia é de criança, meio débil e incerta, com erros grosseiros.
"Hoge mamãe ligou cuando eu tava no colegio. Ela tava triste e xorando. Disse que eu não devia fica precupado que o vovô ia mim busca no colegio".
No dia seguinte, há um relato identificado como "na casa da vovó". Ele diz que a mamãe tava no hospital e que o papai tinha ido viajar pra bem longe. Ela ainda chorava. Muito mais. Vovó deve estar com saudade. Ela chorou quando perguntei quando papai voltaria.
Eu... não quero mais ler isso. Nunca mais! Hoje eu entendo o que estava acontecendo.
"Comprar as flores que a vó pediu", diz minha agenda. Vou comprar as flores.
Mas... eu ainda estou na casa da vó? Por que eu estaria? Preciso saber mais coisas. Preciso do meu passado.
"Hoge mamãe veio mora aqui na vovó tambem". E agora eu sei, oficialmente... descanse em paz, papai. Ao lado tem um desenho, eu, mamãe e papai de mãos dadas; papai com asas e mamãe com um corte no rosto. Estamos num parque muito bonito e tem uma borboleta pousada no ombro de mamãe, mas ela tá chorando.
Vou comprar as flores que a vó pediu. Trago uma para o meu diário.

Vovó parecia triste com as flores, mas apenas me disse para voltar ao quarto.
Por mais que eu esteja triste com o que leio no meu diário, eu preciso continuar. É inevitável! Vocês entenderiam se não soubessem como chegaram aqui; ou como chegaram a qualquer lugar.
"Vovô disse que a mamãe foi viaja tambem. Ela nao vai voltar que nem papai. Eu sei!!!!". É, eu sei. E eu sei porque moro com minha avó ainda.
Não quero mais saber a continuação disso. Preciso ter algo alegre na minha vida. Deve haver alguma página aqui que não me faça chorar.
Dia 4 de setembro de 1999. "Hoje aconteceu um acidente no colégio. Eu sei que não podia fazer nada. Eu sei! Não podia impedir. Não é culpa minha! Não! Eu cairia também, e não havia quem nos segurasse. Eu tentei! Eu juro! Ninguém acredita em mim e eu nunca mais voltarei pra escola. Nunca mais. Ninguém entende que eu também gostava dela!? Eu gostava muito mais. Eu a amava."
Eu a amava... Ela foi viajar...
Eu... vou ler sobre o dia de ontem! Preciso de um dia feliz. Um só.
"Hoje eu acordei com sirenes. Vovó estava chorando ao lado da escada e dois homens carregavam vovô numa maca... Sentirei tua falta, muito."
Não há nada na minha vida que valha as páginas deste diário. Nada que justifique poder lê-las depois. Desisto! Não quero saber de onde vim, ou porque vim.
Me importa agora, simplesmente, saber para onde vou... amanhã.
Dia 23 de novembro de 2002, na agenda. "Comprar flores para o velório da vovó."

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Do desistir

Eu poderia falar sobre como meus gostos são como os de uma velha, e da forma com que isso me faz feliz, mas não há novidade aí... Falo assim de como desisto de boa parte do que gosto e me sinto muito menos envergonhada do que deveria.

Gostava de escrever e este domínio vive intocado.
Gostava de desenhar e hoje até quadrados são tortos.
Gostava de costurar e tenho procrastinado pregar botões.
Gostava de fazer doces e agora levo dias pra fazer uma gelatina.

A parte mais vergonhosa é que não me envergonho. E esta frase é apenas mais uma incoerência nesta história toda.


... Embora agora que escrevi isso vejo que tenho sido lamentável comigo mesma.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Relações humanas

As pessoas cismam em acreditar na idéia errônea de que relações antigas são sobrepostas pelas novas.

Relações se desgastam ou se fortalecem. Seguindo o curso dos acontecimentos, a vontade dos envolvidos, os objetivos, a logística, enfim, vários fatores. E neste meio tempo surgem outras, pois somos dependentes de contato humano, em vários níveis.
Pensar, porém, que estas novas relações te farão esquecer daquelas que se desgastaram contra a tua vontade é besteira. O programa do domingo ainda fará falta, por mais que a nova companhia seja interessante e se proponha a repetir o famoso passeio dominical (não que a pessoa esteja sempre ciente de estar propondo-se).
Por mais que a companhia de conversa agora seja mais inteligente, compartilhe os mesmos gostos ou tenha mais tempo a dispôr, ela não vai, jamais, fazer-nos esquecer os diálogos anteriores, por mais que fossem bobos ou, quem sabe às vezes, ofensivos.
As pessoas podem nos magoar, nos decepcionar, mas ainda assim fizeram parte das nossas vidas, e isso não muda. Há um pouco delas no que somos agora. Há um pouquinho de cada um dos passeios de domingo, de cada uma das conversas, de cada uma das características pessoais.
Por mais pessoas ao nosso redor que se tenha hoje, aqueles que foram marcantes não serão esquecidos, lamento.

domingo, 10 de outubro de 2010

Receita da felicidade


Vamos começar com alguns esclarecimentos: esperar uma receita de felicidade eterna é o mesmo que esperar que o bolo de laranja que a vovó fez no dia das crianças dure "a perder de vista", por mais que se coma. Em tempo, se durasse seria péssimo, porque o bolo de laranja que era tão bom viraria um tormento. Assim sendo, as receitas aqui difundidas fazem apenas algumas porções, umas mais, outras menos.
Aqui apresento receitas simples, que utilizam ingredientes de fácil acesso. Algumas exigem um tempo de preparo longo, outras, porém, apenas uns minutos. Escolha aquela que lhe parecer melhor.
Então, vamos lá: uma trufa depois do almoço, um banho morno no fim do dia, chimarrão com palavras cruzadas, filme com chocolate, dia de chuva com pipoca, guerra de farinha, um beijo de boa noite, cozinhar com companhia, descobrir uma boa banda, uma xícara grande de café, ouvir música na cama, terminar um bom livro, caminhada no parque, tomar banho de chuva, porre de vodca barata na companhia de amigos, tocar piano e comer Chandelle, andar de bicicleta, almoço com bons amigos, praia de noite, jogar sinuca num boteco barato, caminhar sem rumo, tocar violão entre amigos, dividir um pote de sorvete, subir na torre da igreja, fazer bolhas de sabão, voltar a ser criança, colher morangos...
Na verdade, grande parte da felicidade está em criar uma nova receita...

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Margaridas vermelhas


- Te apressa que já é hora do trem!
- Sim, Carlota, sim! Estou pronto, apressa-te tu!
"Ah, esse atrevimento juvenil". Carlota prende o último grampo no cabelo, pega de relance a maleta rosada e precipita-se à porta de entrada. Yjan se atrapalha pegando as malas, dando tempo a que Carlota chegue à porta e retorne, repreendendo-o:
- Anda, menino! Aligeira-te! - a velha portuguesa aproxima-se para apanhar uma das malas - Agora vamos, sim?
Saíram os dois correndo à estação, que não distava dali. Ainda assim, tiveram apenas o tempo de ver passar o trem, sentando já no banco de ripas para esperar o próximo.
No último vagão ia Anuchka, com a expressão habitual de indiferença, que sentia por todos aqueles que a não serviam. Pôs-se ela a rir ironicamente ao ver perderem o trem os dois atarantados.
Que grande indignação perpassou àquele trem, diante de Yjan. Já a tia, Carlota, nada vira, porquanto maldizia o mundo pelo atraso que não fazia menção sequer a eles dois.
Passou-se um penoso quarto de hora até avistarem outro trem na encruzilhada dos trilhos. Imediatamente o menino - que já nem podia ser chamado menino, mas permanecia no costume dos chegados - levantou-se do banco e acenou com o braço, garantindo-lhes um canto à cabine.
Ao frear o trem, o cobrador já atirara as malas no compartimento a elas destinado e recolhera os bilhetes aos passageiros.
A viagem de Bergen a Oslo não era breve, ainda mais na companhia da tia beata, a falar de religiões e costumes lusitanos, sobre os quais, tanto o primeiro, quanto mais o segundo, nenhum interesse tinha Yjan. Sendo assim, deixou Carlota a falar com as flores do estofado e meteu-se em seus devaneios.
Passado pouco da metade da viagem, já Yjan tinha revisto mentalmente todos os pormenores de sua vida, de seu tutor de latim e do padrinho, que não tinha uma vida muito "à moda". Dois parcos minutos foram o suficiente para voltar-lhe à mente a revolta causada por aquele sorriso irônico, mordaz. Não mais tempo foi necessário para transformar-se aquela revolta em uma curiosidade satírica.
"Há, por detrás daquele escárnio, algo mais. Há ousadia.". E assim despendeu o resto do tempo, pensando naquela ousadia. Parecia-lhe esta tão vil, mas, ainda assim, algo atraente. No exato momento dessa conclusão ouviu ranger os trilhos, indicando Oslo, que já ali estava.
Despedir-se da tia, após os oito meses de doença de sua mãe, agradava-lhe, não só por não simpatizar com a típica lusitana, mas também por saber assim a mãe reestabelecida completamente. Levou-a ao hotel, onde esta ficaria por mais dois dias, com toda a disposição que reuniu, sem dificuldade.
-Yjan! Te arranja, menino! Estás tu com os cabelos desgrenhados e a camisa amassada.
Yjan cedeu, mas se atrapalhando novamente com as malas, por ter de passar os dedos pelos cabelos, recebendo assim outro reproche.
Após dez quadras de malas pesadas e dizeres religiosos, chegavam ao hotel. Carlota assinou a reserva e pediu ao carregador que levasse as malas para o quarto. Yjan, não perdendo tempo, já ali despedira-se da tia e fora procurar um doce de amêndoas, que costumava comer sempre que ia a Oslo.
Com o doce na mão, correu até a estação, desejoso de voltar para casa. Logo que chegou, viu passar o trem. Sentou-se no banco mais próximo aos trilhos, olhando para os plátanos cruzados pelo trem que passara. Ao perder o trem de vista, olhou pro banco e viu uma menina impaciente, de olhar indiferente. Um sorriso de escárnio tomou conta do rosto de Yjan.
O silêncio entre eles só foi quebrado pelo apito do trem, dez minutos depois, que parecia rasgar os trilhos, voltando para Bergen.
A garota passou por Yjan, pulando logo no vagão, deixando este a cuidar das suas malas, entregando-as ao guardador. Yjan foi procurar uma cabine vaga, mas o que mais perto disso encontrou tinha ao canto aquele olhar indiferente. Pediu licença e sentou-se.
O garoto, ao cansar-se daquele silêncio constrangedor, perguntou-a do tempo, comentou sobre a viagem e os novos trens, indagou-a sobre sua impressão a respeito de Oslo. Desistindo de obter uma resposta, perguntou-lhe o nome e calou-se. A menina olhava-o, muda, passando assim quase cinco intermináveis minutos.
- Anuchka.
- Como?
- Meu nome. Anuchka.
- Prazer, Yjan.
- Essa primavera parece bastante amena, em tempertura e pluvialidade. As viagens ficaram mais agradáveis nesses trens, apesar de continuarem longas demais. Oslo ainda é a mesma, fria e adorável.
Yjan foi tomado de uma perplexidade visível em seu rosto, que fez rir Anuchka. Pela primeira vez ela não parecia indiferente, mas seu sorriso ainda tinha um fundo de ironia, que agora parecia a ele bastante encantadora.
- O que fizeste de tão breve em Oslo? - perguntou ela.
"Ela lembrou-se de mim na estação". - Fui levar minha tia ao hotel, para passar uns dias na capital. - Deu a resposta, arrependendo-se imediatamente da brevidade. - E você?
- Fiz só o que faço sempre. Viajo de trem, pra qualquer lugar, evitando assim ficar em casa.
"Além da ousadia, algo mais tem parte nessa indiferença". Enquanto esse pensamento o dominava internamente, junto a uma curiosidade irresistível, a única coisa que disse foi: - Moras em Bergen?
- Sim, mas não estaria errado dizer que moro nesse trem.
Quebrado o silêncio inicial, a viagem pareceu-lhes mais curta, entre curiosidades e afinidades. Porém, aquele sorriso de ironia não abandonou o rosto de Anuchka, nem por um instante.
Ouviram novamente o rasgar dos trilhos, provocado pelo freio do trem. Anuchka pulou para a estação, antes mesmo de o trem parar completamente, e dirigiu-se à bilheteria. Yjan foi atrás dela.
- Vais onde agora?
- Oslo.
Sem entender e novamente perplexo, Yjan preferiu não perguntar-lhe. Despediu-se e foi pra casa, lentamente, pra ter tempo de recordar toda a viagem. E, claro, ver Anuchka embarcar no próximo trem.
Já em casa, Yjan continuava inquieto, pensando naquela garota tão peculiar. Decidiu-se por esperá-la na estação, encontrando-a no trem de volta de Oslo. Depois da resolução tomada, ainda precisava de um motivo fictício para lhe expôr.
Almoçou com a mãe e voltou à estação, dizendo a esta que iria dar uma volta. Chegando lá, sentou-se no mesmo banco da manhã, a esperar, resolvido a dizer-lhe que estava esperando a tia, que decidira voltar.
Cinco minutos passaram pra ele se convencer de que a desculpa era inacreditável e decidir-se por deixar-lhe claro ser ela o motivo. Apanhou uma margarida na lateral do trilho.
Mal sentou-se, com a margarida na mão, e ouviu o apito do trem. Tentou parecer-se inabalável, até que Anuchka se aproximasse. De fato, ela o fez, sorrindo com a ironia que agora o agradava.
- E essa margarida?
- É sua. Como foi a viagem?
- Pena não ser vermelha. A viagem foi igual às outras.
- Não há margaridas vermelhas. E Oslo, como estava?
- Um dia encontro quem mas dê. Igual, fria e adorável.
Yjan entregou a margarida e foi-se embora, sem sequer um agradecimento. Pelo caminho resolveu-se não mais ver Anuchka. Ao chegar em casa já não estava assim tão resoluto.
No dia seguinte, Yjan voltou à estação, com um frasco de tinta vermelha. Ouviu o apito do trem e correu, ainda precisava da margarida. Anuchka viu-o e sorriu trocista.
Yjan abaixou-se rápido para apanhar a flor. Desequilibrou-se. Caiu nos trilhos.
Anuchka teve suas primeiras margaridas vermelhas.